quinta-feira, 14 de maio de 2009

Liberdade

_____José tinha viagem marcada. "Negócios são negócios". E não podia perdê-la, não podia sequer atrasar-se. "Além disso" - desabafou em pensamento - "fico longe dessa família insuportável, opressora e parasita". Sentia-se um escravo em sua própria casa: a mulher não entendia as suas ausências (José trabalhava muito) e cobrava-lhe insistentemente mais tempo com ela e com os filhos. Ele dava-lhe explicações. À distância, por telefone, justificava a distância e contava-lhe a necessidade de negociar face a face com os clientes - "essa é a chave do sucesso" - dizia, mas a esposa, "obtusa e egoísta", não reconhecia seus esforços: "Mas não reclama do dinheiro que lhe sustenta os caprichos", o desabafo continuava. Os filhos, não os viu crescer: da filha, lembrava alguns sorrisos; do filho, pouquíssimas brincadeiras no quintal. E agora tinha em casa a mulher e esses dois estranhos, cujo benefício - único! - era o desconto no imposto de renda.
_____"Ainda me liberto", em voz alta, dentro do carro. “Um dia... a liberdade...", agora com raiva.
_____O amigo, ao volante, assustou-se:
_____─ O que é isso, José? Raiva logo cedo?! Vê se dorme um pouco, esse estresse ainda vai lhe fazer mal.
_____José riu sem graça, fechou os olhos e dormiu, um sono profundo. José sonhou com a liberdade. Sozinho... voava tranquilo... e olhava o mundo do alto e de longe... fascinavam-lhe as nuvens... a paisagem vista do céu... os pássaros... as árvores e as flores... chegava a sentir-lhes o perfume suave e arrebatador... – Livre!... este é o fascínio da liberdade: o vento no rosto... o corpo leve... o prazer sem limite...
_____Do alto... via o movimento dos carros na rodovia... o fluir contínuo que aos poucos ia se transformado em engarrafamento... “Nem em sonho estou livre disso” pensou, ciente agora do seu sonho... Todos os dias os mesmos problemas: reparos na pista, algum carro quebrado, blitz ou acidente. Seguia acompanhando a fila, interminável... De repente, uma movimentação intensa de policiais, bombeiros e curiosos chamou-lhe a atenção. Curioso, aproximou-se. Era um acidente, "gravíssimo", pensou. Tinha uma visão privilegiada e esse privilégio permitiu-lhe ver um corpo entre a ferragens de um carro. Aproximou-se ainda mais... Era o carro do amigo! Olhou entre as ferragens retorcidas e reconheceu-se entre as desfigurações...
_____A angústia tomou-o de assalto, o desespero invadiu sua alma, já não voava, corria entre as pessoas à procura de detalhes. Ouvia vozes confusas e incrédulas, sirenes das viaturas, ruídos dos metais, motores e engrenagens. Desejou acordar e tentou com toda a força de sua consciência, mas o sonho - agora pesadelo - insistia. Em seu sofrimento, José encontrou o amigo, próximo ao carro, as mãos na cabeça, os olhos no vazio, gritava e chorava copiosamente. Tentou alcançá-lo, não conseguiu. Bombeiros que seguravam o amigo pelos braços o tiraram do local. Olhou novamente para si mesmo entre as ferragens – fragmentos retorcidos de si mesmo – e entendeu definitivamente a situação...
_____Afastou-se confuso... um peso invadiu-lhe o ser... Sentou-se à beira do caminho e, alheio a todos, chorou a liberdade conquistada.

Um comentário:

Marcelino disse...

Curtt, esse penúltimo parágrafo poderia ter sido dividido em dois momentos, concordas?: no primeiro, José ainda ñ tem consciência de q morreu; no segundo, o personagem conscientiza-se do seu estado. É só uma sugestão. O texto, o enredo, a trama são muito instigantes, parabéns!